sexta-feira, 14 de julho de 2023

Couraça.

 
Acaba de chegar uma frente fria à cidade.
Daquele dia lindo de sol, céu claro e tarde cheia de calor, veio uma ventania danada.
Vento gélido, devo dizer.
Uma friaca de doer no peito.
E como dói, meus caros, como dói.
 
Não quero encarar esse tempo mórbido,
Nuvens escuras.
Queria acreditar que ainda que tenho um dia de praia todos os dias.
Daqueles memoráveis nos quais se vai, se mergulha e se renasce.
Queria reviver um dia daqueles só para sentir aquelas águas que me envolveram e não me deram outra escolha senão entregar-me ao balanço das ondas.
 
Tolice.
O tempo não volta.
Nenhum momento é revivido.
E o que vai, se vai.
 
Mas queria.
Queria poder sonhar novamente com aquele futuro presente que tive aqui nas mãos e que não deixei escapar.
Uma utopia propensa a deixar-se morrer e virar vida.
 
Tolice de novo.
Utopias não se realizam.
São utopias, oras.
Se esse nome recebem, meu caro, não é à toa.
 
Mas queria tanto que acreditei no incrível.
Levitei mesmo sem ter sabido o que não tocar os pés no chão era.
Consegui.
Voei.
Pouco, mas voei.
Caí.
Mas voei.
 
Agora eu decidi sair às ruas nessa penumbra.
Tempo severo esse aqui.
Pelo jeito, essa frente fria é das brabas, daquelas que chegam de malas e provisões. Passeios ao ar livre? Nem tão cedo.
 
Não importa.
Tenho que sair, então saí.
Não levei capa, nem guarda-chuva.
 
Nos pés, chinelos.
No corpo, só um short.
Na cabeça, um bonezinho e óculos escuros no rosto.
 
Quem me olhar, não verá um louco, como pensaram.
Verão a mim em um dia de praia.
As águas no rosto não me freiam.
Sigo novamente em direção ao mar.
Eu sei que chove. Eu sinto os pingos árticos me atingir.
Mas só chove em mim. Eu que sinto.
Aos outros, é só mais um dia de praia.
Um belo dia de praia.
 

terça-feira, 13 de junho de 2023

Lírico.

 

Eu gosto de declarações
Explanações amor
Rasgadas de adjetivos
Desenhos, traços, contornos
Coloridas, cada cor pensada
Escolhidas para decorar o papel
Aquele pedaço impresso de expressão
Uma fagulha de sentimento
Acho lindo tudo isso
Sem mentiras,
Talvez exageros, sinceros
Resultado da combustão
Da paixão inflamada
É o deixar-se ser em palavras
Explodir-se
Gosto de toda sorte de declarações
Até das curtas, simplórias
As longas, recitadas
Cada uma a sua forma
De dizer e sentir
Escritas, por vídeo, por som
Ah, o som das palavras
O som delas pela voz de quem se ama...
É bom suspirar
É bom lembrar e pensar...
Saber que ao longo de um dia inteiro...
Ele também parou e me viu
Me ouviu, me sentiu...
E, por fim, sorriu.
Não gosto de esconder amor
Por que o medo de se expor?
Amar é tornar-se vulnerável
Faz parte do encanto
É entrega ou não é!
Eu gosto de declarações
Do coração, da alma
Que floreiam o dia
Que aliviam o ar
Que não mascaram
Que não iludem
Que apenas declaram
Aquilo que os olhos já dizem
Que os gestos já sentem
Que o toque tanto nos canta.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Extremo.

O copo está cheio
Embora grande, está cheio
Largo, de abundante conteúdo
Fundo que não se vê o fim
Está cheio
Nada mais cabe
Nem uma baga de suor
Uma lágrima derramaria
Está cheio
Depois de muito tempo
Dejetos acumulados dia a dia
Um lixão a peito aberto
Passou da tampa
Está cheio
Cai pelas bordas
Estufa a tampa que nem mais fecha
Tudo junto, amontoado
Chegou ao limite
Inimaginável limite desconhecido
Está cheio
Está tombando
Enverga-se de dor
O copo está cheio demais
Agora não dá
O tempo acabou
Morreu o calar
O copo virou.


segunda-feira, 24 de abril de 2023

Púlpito.

Não quero glórias
Não quero fama
Não quero destaque
 
Não quero heroísmo
Não quero luzes
Não quero palco
 
Não quero ser lembrado
Não quero homenagens
Não quero tributos
 
Não quero fortunas
Não quero ouros
Não quero tesouros
 
Não quero ser invejado
Não quero tumultos
Não quero fãs
 
Não quero aventuras
Não quero voltas
Não quero angústias
 
Não quero um altar
Não quero sóis
Não quero um luar
Só quero ser feliz
 
Felicidade é apenas viver sem temer.
Seja a vida que for
Não importa onde, sob qualquer teto
Com quem quer que seja
Ou fundamentalmente sozinho;
Ser feliz é não ter medo.

terça-feira, 21 de março de 2023

Assunção.


Obtusos. Sabemos de nada.
Buscamos uma linearidade
Uma uniformidade em tudo
Segurança, né. Quem não gosta?
Queremos saber o que sentiremos
Prever quando e como vamos sofrer
Queremos nos precaver, nos preparar
Até os inquietos são constantes
Mantêm suas irregularidades.
Enfim, tornam-se regulares.
O descompasso das ondas é a constância do mar.
Sobem e descem marés todos os dias.
As ondas sempre variam de tamanho...
De intensidade. Principalmente.
A calmaria esperada vira...
E a marola te esbofeteia.
“Acha que consegue me controlar?”
As águas só param quando querem
E só cabe a nós aceitar.
Não se pode mudar os ventos.
Quando o verão termina
Por vezes...
Começa a primavera.
Colhamos as flores de Março.


segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Confissão.

Sou tantos mistérios
Tanto me escondo que me canso
Quero sempre me compreender
Busco um entendimento
A forma mais didática de explicar
A mim mesmo
Quem sou e como sou
Por vezes, tento me ler
Me perco no meu próprio idioma
Tradução quase que inviável
Sem controle, desvairado
Descendo a ladeira há muito avistada
Com muro no fim
Ausência de freio
Batida iminente e consciente
Juro que tento captar o meu ser
Dar a ele um rótulo
Um nome, uma definição já dicionarizada
Limitá-lo a algo pré-existente
Porém, sou incoerente aos meus conceitos
Me traio constantemente
Faço tudo que não aconselho
Ouço aquilo que abomino
Desejo o proibido
Almejo o impossível
Quero a perfeição quimérica
Peço, imploro, rastejo
Humilho-me sem vergonhas de ser
Assino minha sentença
Abro minha cova
Gostaria de olhar no espelho
Me enxergar pela primeira vez
Mas não me defino
Não me vejo, não me desenho
Não há auto retrato
Sou invisível aos meus olhos
Seco em minhas lágrimas

Dormente ao meu toque.

domingo, 12 de julho de 2020

Laxante.




Ah se eu pudesse dizer o que calo
Tudo que a educação me impede
Educação e moral
Censura mental, vulgo bom senso
Esquecer quem é quem
“Sabe com quem está falando?”
Sei, seu resto de gente
Rascunho rasgado roído
Pelos ratos da Central
Não importa de quem seja filho
Seja marido, esposa
Filho da pulga que fosse
Ouviria, teria que ouvir
Sem opção, nem para onde ir
Observariam ser diminuído
Reduzido a uma fração de canalhice
Ainda mais ínfimo que a própria dignidade
Empatia? Somente aos empáticos
Seria por respeito a todos, em nome de todos
Diria tanta coisa
Regurgitaria em nome de milhares
Seria um momento catártico, depurador
Memorável aos passantes
Gravado e viralizado em segundos
Dentre fãs e carrascos, eu relaxaria
De ombros aos sensatinhos da vez
Ou um cremoso “phoda-se” a eles todos
Com “ph” mesmo, para ser clássico
Com ênfase na primeira sílaba para ser cirúrgico
Como uma mão aberta
Estalada nas fuças
Marcando os cinco dedos
Defensores da moral conveniente
Da educação silenciosa
Chamam de respeito a conivência
Leis cúmplices
Mandaria todos para a casa do queralho
Não me falem em postura
Não me falem em tolerância
Não há tempo para isso
Gritaria, “Cansei!”
Explosão, copo virado
Essa indiferença me vira o estômago
Deboche sem talento, sem vocação
Sinto raiva mesmo
Esse escárnio todo me consome
Esgota-me
Calo minha voz
Meu espírito vocifera
Minha mente não sossega
Meu peito sangra
E o mundo samba
Não dá... .
Não posso...
Mas se eu pudesse... .